Blog
O Discurso do Rei
- 18 de maio de 2011
- Postado por: Prof. Alcides Schotten
- Categoria: Recomendamos
Encontro entre o futuro rei da inglaterra e seu terapeuta aborda relação de transfêrencia, fundamental para mover o paciente da paralisia sintomática.
Revista Scientific American – por Maria Inês Tassinari
O filme O discurso do rei, do diretor inglês Tom Hooper, apresenta a história verdadeira da superação de um mal-estar na fala: a enigmática gagueira. Embora não possa ser atribuído a uma única causa específica, trata-se de um sintoma que começa a aparecer por volta dos 3 anos, quando – do ponto de vista psicanalítico – a criança deveria estar em condições de cumprir etapas do desenvolvimento associa das ao complexo de Édipo, entre elas a identificação com o pai, no caso do menino.
A história do duque de York, conhecido como Bertie pelos mais próximos (Colin Firth), lançada em livro pela Record, revela vários fatores que dificultam essa identificação: a sabotagem da babá que prejudica sua imagem para os pais e lhe impõe a humilhação de ficar sem comer. Em seu relato marcante fica clara a condição de submetimento ao desejo perverso do outro, da qual deriva um problema estomacal crônico e o ernbotamento da fala. O impedimento do olhar dos pais em sua direção simbolicamente barra as chances de reconhecimento, o que culmina com o fracasso da identificação com a figura paterna.
A impotência simbólica é delatada em suas tentativas de sustentar as palavras entrecortadas pela falência do ritmo. A busca inglória de tratamentos sem resultados reedita as humilhações às quais o personagem responde com a agressividade recalcada na infância.
O sintoma produz essas mazelas, mas de certa forma também permite ao menino excessivamente castrado alimentar-se amorosamente na intimidade da família preservada da dor que constituiu, onde pode exercer o papel de pai amoroso e marido amado.
É influenciado pela terna insistência da esposa que decide procurar o terapeuta Lionel Lougue (Geoffrey Rush). A partir daí começa um processo terapêutico recheado de lições sobre a função do terapeuta, pensada pela psicanálise como indissociável da condição que este tem de manejar a transferência e, assim, favorecer a percepção de traços apagados, movendo o paciente da paralisia sintomática. Considerando que a transferência é uma solicitação de reconhecimento e amor remetida a alguém com quem imaginariamente a pessoa se identifica e a quem atribui um saber, podemos pensar que seja também o aval para que o processo terapêutico aconteça em qualquer clínica.
É preciso supor uma condição de autoridade no terapeuta como esteio para percorrer a própria história. Apesar da arrogância apavorada e da transferência nega-tiva despertada em outros tratamentos, o futuro rei suporta ser visto e ouvido de um prisma bastante distinto da “versão oficial” de si mesmo.
Inicialmente a concessão dada ao terapeuta estava atrelada à condição de que este apenas focasse sua prática em “truques” e exercícios, visando driblar a falta de fluência verbal. Colocado num suposto lugar de competência, o terapeuta passa a delimitar as regras de funcionamento do setting.
Esse aspecto marcante do trabalho terapêutico parece trazer como consequência a possibilidade de o duque se identificar com um homem que pode exercer autoridade sem subjugá-lo – e descobre assim uma nova modalidade de relação. Tendo em mente que os truques não resolveriam o problema, o terapeuta recorre a determinadas técnicas como estratégia para chegar ao cerne do sintoma do paciente – Lionel o escuta enquanto oferece exercícios respiratórios e inclui em sua prática a articulação entre o sentido do sintoma e as experiências do futuro rei. Assim, acolhe o desejo escamoteado por trás do sintoma. Protegido pela confiança na técnica, o nobre inglês relaxa o corpo e solta a voz, grita seu ódio, localiza seus medos e aparece como Bertie.
Tudo parece caminhar bem até a morte do pai do duque de York, o rei George V. A dor da perda e o pavor associa do à possibilidade de vir a ocupar o trono mesclam-se com a proximidade concreta de seu desejo, tantas vezes negado, de ser rei. Para suportar e reconhecer esse ideal, precisa destronar ou matar simbolicamente o pai – e assim autorizar-se a receber a herança, transformando-a em algo próprio. A ruptura com o terapeuta é o recurso que, inconscientemente, encontra para negar essas aspirações, pois uma vez assumidas seria inevitável enfrentar o medo associado a elas. Seu desejo é lançado contra o terapeuta como uma bomba prestes a estourar sua identidade de menino inseguro, frágil, contido, covarde – e sem fala.
A sobreposição do desejo do terapeuta e ao do paciente levam Lionel a se retratar, mas neste momento não pode ser ouvido. Felizmente o paciente retoma a construção de uma nova condição, deixa de ser um menino forjado para caber em ideais que o alijaram da condição de sujeito de desejo. “Nasce” então o rei George VI. Levando em conta que sintomas são formações do inconsciente que indicam conflito entre o medo e o desejo, é possível considerar que, sem a gagueira, o duque de York cairia num vazio identitário. Esse risco, porém, é suficientemente substituído pelo olhar generoso e confiante de Lionel, presente até a última cena. Uma postura cujo sabor renova o espírito da plateia, fazendo quem assiste confiar, mais uma vez, que suportar o “não saber” é condição para que o outro apareça como protagonista de sua cura e da superação de certo estado de infelicidade.
Assista ao trailer do filme:
Sobre a autora
É doutora em psicologia, psicanalista e fonoaudióloga.